O luto é um processo individual, altamente pessoal e subjetivo. Não há uma forma correta e normal de viver uma perda. Não há roteiro nem existe fórmula. Há só a certeza de que é sempre difícil. E se é difícil para um adulto, também o é para uma criança ou adolescente. É difícil, mas necessariamente diferente. Por isso, o luto na criança tem particularidades que devem ser tidas em conta, e que exploraremos neste artigo.
O que é (e não é) o luto?
A perda é a única certeza inevitável que temos na vida. É transversal, todo e qualquer ser-humano passará por ela. A dor da perda é dilacerante, sufoca e consome. Conhecemos o desenrolar do ciclo, sabemos e somos conscientes que tudo nasce, se desenvolve e morre. Primavera, verão, outono, inverno. Nascer, desabrochar, florir, decair e morrer. Nada dura para sempre. Possuímos essa certeza de forma clara e indubitável e, no entanto, quando ela chega, não estamos preparados.
Não há ensaios ou simulacros para viver uma perda. Não há compasso de tempo suficiente. A perda é crise. Ruptura. Quebra abrupta no equilíbrio daquilo que consideramos normalidade.
Ao processo de vivência de uma perda chamamos luto. Luto não é vestir preto, chorar muito e compulsivamente, dizer adeus e fazer funerais. Luto não é isso e pode ser tudo isso ao mesmo tempo.
Luto não é sinónimo de morte, mas sim de perda. Perda de alguém que morreu, de alguém que se foi embora, de um sonho que se destronou, de uma doença que levou a saúde, de um amor que abandonou. Está de luto a Leonor, que viu o seu peixinho dourado morrer, assim como a D. Amélia, que perdeu o marido, companheiro de há 50 anos. Está de luto o João, que perdeu o emprego de sonho, da mesma forma que a Sara, cuja relação de 8 anos terminou. Está de luto o António, cujo diagnóstico de cancro lhe alterou a vida, assim como a Maria, que perdeu o filho num acidente de viação. Tudo isto são lutos, e não podem ser comparados em gradiente de sofrimento.
Luto: um processo individual e subjetivo
O luto é um processo individual, altamente pessoal e subjetivo. Não há uma forma correta e normal de viver uma perda. Pode-se vestir preto ou não vestir, e a roupa que se exibe por fora não reflete necessariamente a cor que nos cobre a alma. Pode-se chorar ou não verter uma lágrima, e não haverá líquido lacrimejante que possa medir e avaliar a dor. Pode-se dizer adeus ou não dizer, remeter-se ao silêncio ou evocar o nome todos os dias. Não há roteiro nem existe fórmula. Há só a certeza de que é sempre difícil.
E se é difícil para um adulto, também o é para uma criança ou adolescente. A forma de gerir e vivenciar essa perda é necessariamente diferente. Assim, o luto na criança tem particularidades que devem ser tidas em conta. Considerar as particularidades do luto na criança permite ao adulto conseguir dar uma melhor resposta às suas necessidades.
As particularidades do luto na criança
1 – A criança deve saber a verdade.
O nosso instinto diz-nos que devemos proteger a criança, vedá-la da crueldade e dureza de alguns aspetos da vida. No entanto, frequentemente, numa tentativa genuína de proteger a criança, podemos, inadvertidamente, provocar-lhe mais dano.
Muitas vezes, não falando da morte, o adulto considera estar a proteger a criança e a aliviar a sua dor. Porém, desse modo a criança irá sentir-se confusa e desamparada. Dizer que “foi para longe” ou “para um lugar melhor” pode originar um sentimento de incompreensão e abandono por parte da criança. Porque é que decidiu ir para longe de mim? Se foi para um lugar melhor, porque é que também não me levou?
Outros eufemismos, como “foi para os anjos” ou “para o céu” poderão ser igualmente confusos se a criança não compreende, de forma inequívoca, o que significam. Depende também do enquadramento e educação, nomeadamente a nível religioso, que a criança tem. Houve uma criança que, por lhe terem dito que o avô “foi para o céu”, desenvolveu uma fobia e um medo excessivos de que pessoas mortas iam começar a cair do céu, como chuva.
Por muito pesada que a palavra “morreu” possa ser, é a que deve ser utilizada. A criança deve compreender que aquela pessoa morreu, porque estava doente ou teve um acidente, e que não vai voltar.
2 – Perda não é necessariamente sinónimo de morte.
Quando falamos de luto na criança, às vezes desvalorizamos a ocorrência de determinadas perdas, sem compreendermos que, para a criança, estas podem desencadear um luto tão complexo quanto a morte. Perder um animal de estimação, afastar-se de um amigo, ou o término de uma relação amorosa num adolescente, são perdas altamente significativas. Devem ser valorizadas como tal, e deve compreender-se que desencadearão um processo de luto, que serão geradoras de sofrimento e que esse sofrimento deve ser valorizado.
3 – Crianças vivem o luto de forma diferente.
As crianças não são adultos em miniatura e, por isso, a forma como vivenciam o luto é distinta da dos adultos. Ou seja, o luto na criança é específico e particular à fase de desenvolvimento. Esperamos, muitas vezes, que a criança chore ao receber a notícia. No entanto, tal pode não acontecer. A criança pode agir como se não lhe tivessem dito nada de muito relevante, por vários motivos: por não compreender o verdadeiro significado da morte, sobretudo a sua irreversibilidade; por não ter a mesma capacidade de gestão e expressão emocional que o adulto; por as suas reações puderem ser mais tardias e indiretas.
No luto na criança, o sofrimento pode surgir, por exemplo, através da regressão: voltar a querer usar chupeta, ou brincar com brinquedos de quando era pequena. Para a criança a segurança e sensação de proteção é fundamental, por isso é natural que se centrem em questões mais práticas. Por exemplo, uma criança que, após lhe ter sido dito que o pai morreu, questiona “agora quem é que me vai levar à escola?”. Esta reação não deve ser encarada como ausência de sofrimento, mas como um processo natural para uma criança.
No processo de luto na criança, também é frequente que, ao invés da tristeza, adote comportamentos de raiva ou irritabilidade, e até que possa comportar-se de forma mais desajustada (tornar-se “mal comportada”). A agressão assinala que a criança está sob tensão e manifesta externamente a sua agitação interna. Para as crianças pode ser mais difícil a manifestação da angústia por palavras e fazem-no através dos seus comportamentos. Em crianças mais pequenas a expressão do sofrimento pode advir sobretudo de mudanças fisiológicas: dores, cansaço, falta de apetite, entre outros sintomas similares a quando a criança está doente.
4 – O adulto não precisa de esconder o seu sofrimento da criança.
Vivenciar um luto tendo uma criança a nosso cuidado é um duplo sofrimento muito complexo. O desejo de proteger a criança e, ao mesmo tempo, a gestão do nosso próprio sofrimento, torna-se um processo difícil e penoso. No entanto, não temos necessariamente de ocultar o sofrimento da criança, esconder o choro à frente dela ou fingir que tudo permanece igual. Na verdade, o processo de luto na criança pode ser facilitado pela nossa expressão emocional.
Expressarmos as nossas emoções à criança é uma forma de ela aprender o que são as emoções, e que é natural e saudável expressá-las. Que, tal como nós, também ela pode chorar, e estar triste. Estamos a educá-la para a gestão emocional, e a criar uma abertura para uma ambiente familiar onde a comunicação, o afeto e a proximidade estão presentes. O cuidado que deve existir é o de assegurar os cuidados da criança, estar disponível para ela e, dentro do possível, retomar as suas rotinas.
5 – Deve permitir-se que a criança se expresse.
Quando somos portadores de notícias tão difíceis, é natural que queiramos, ao máximo, evitar falar ou alongar-nos no assunto e, por isso, ainda que sem ser propositado, silenciamos a criança e não lhe damos oportunidades de expressão. A criança terá, naturalmente, perguntas, dúvidas, e receios. É fundamental perguntar-lhe se quer fazer alguma pergunta, se há alguma coisa que não compreende. Mesmo que não o queira fazer no momento, reforçar a disponibilidade, dizendo-lhe que se tiver alguma pergunta ou quiser dizer alguma coisa pode fazê-lo a qualquer momento.
Permitir falar sobre a pessoa perdida, rever fotografias, visitar locais que relembrem a pessoa, contar histórias ou momentos passados, etc., é uma forma de permitir a adaptação à perda e a gestão emocional. Crianças mais pequenas podem expressar-se por meios mais lúdicos, como os desenhos e as brincadeiras, e deve ser permitido que o façam.
6 – A criança pode fazer parte dos rituais associados à morte.
Frequentemente ouvimos as pessoas dizerem que nunca se deve levar uma criança a um funeral. Talvez a palavra nunca possa ser demasiado extremista. A criança pode, sim, ir a um funeral e visitar o cemitério. Também pode não o fazer. É relativo e dependerá muito de cada situação, cada caso, e cada criança.
De forma geral, se for vontade da criança participar nesse ritual de despedida, se esta quiser visitar o cemitério como forma de lembrar a pessoa perdida, deve ser-lhe permitido.
Devemos assegurar-nos que existem adultos capazes de acompanhar a criança e estar disponíveis para ela, e também prepará-la para aquilo que vai ver, nomeadamente no momento do funeral: que vai haver um caixão, pessoas a chorar, que as pessoas vão vestir roupas mais escuras, que há uma missa, que depois se vai para um cemitério… Tudo isto pode gerar inúmeras questões por parte da criança: o que é um caixão? O que é um cemitério e para que serve? Onde é que o vão pôr depois? Tudo isto deve ser explicado de forma simples e clara. Após este processo, se a criança quiser ir, e estiver devidamente preparada e acompanhada pelo adulto, não lhe tem de ser necessariamente interdito esse momento.
7 – Lidar com a morte é uma aprendizagem de vida.
É importante ajudar a criança a compreender a perda. Que, tal como uma bicicleta ao fim de muitos anos fica velhinha e enferrujada, e não a podemos usar mais, as pessoas também vão ficando muito velhinhas e depois deixam de estar perto de nós. Permitir à criança encarar, gerir e lidar com as perdas é um processo de aprendizagem de vida importante.
8 – Deve procurar-se o equilíbrio entre a perda e o retorno à normalidade.
Tentarmos preencher a criança, a todo o custo, com todo o tipo de distrações (atividades, jogos, amigos à volta dela…) vai adiar a resposta à perda e criar desorganização na criança. Quase como se fossemos enchendo de água um balde até à tona: a dada altura a água vai ter que verter. Ao mesmo tempo, a criança também não deve estar demasiado focada apenas na perda, e deixar de explorar o mundo, enfim, de ser criança. O segredo é tentar procurar o equilíbrio: retomar rotinas, proporcionar momentos agradáveis e permitir que também existam momentos para viver a dor e a tristeza; e para partilhá-la.
9 – É preciso saber quando pedir ajuda.
Tal como no adulto, o sofrimento faz parte do processo de luto na criança. No entanto, é importante reconhecer alguns sinais de alarme que podem sinalizar que a criança precisa de ajuda profissional, nomeadamente, de um psicólogo: a) quando o sofrimento é intenso e interfere na funcionalidade da criança a nível familiar, social e escolar; b) quando os adultos, pelo seu próprio sofrimento, não estão a conseguir assegurar o bem-estar da criança e têm dificuldades marcadas em gerir as suas dúvidas ou sentimentos; c) quando existem pensamentos sobre suicídio ou comportamentos autolesivos (magoar-se a si própria); d) quando a criança desenvolve uma ansiedade excessiva e persistente, ou tem episódios de pânico; e) quando a criança tem alguma vulnerabilidade prévia (nomeadamente algum diagnóstico ou a vivência de uma outra perda recente).